terça-feira, 1 de abril de 2008

Cordeiros de Deus que tirais o pecado do mundo: tendes piedade de nós

Cordeiro [Do lat. vulg. cordariu.] S.m 1. Filhote ainda novo da ovelha; anho. 2. Prato feito com ele. 3 fig. Pessoa mansa e inocente.

A voz off no começo de Cordeiros ( Amaranta Cesar e Ana Rosa Marques), ilustra bem o conteúdo do filme. A massa amorfa que pula atrás dos trios elétricos não tem nome, identidade, cor e nem idade. É apenas uma massa, composta por uma espécie de átomos, divisíveis, no entanto invisíveis socialmente.
E é justamente dessa questão que o filme se ocupa. Em meio à catarse coletiva provocada pelo carnaval, as diretoras buscam histórias comuns, ordinárias, que ocupam uma "importância" mínima na cadeia carnavalesca, ou seja, o lado mais fraco e menos visível da indústria do carnaval baiano: os cordeiros - homens e mulheres, em sua maioria negra vindos da periferia, que seguram as cordas dos blocos em troca de R$ 15,00 por dia, incluído transporte e alimentação.
Mas o maior mérito das diretoras é humanizar personagens marginalizados, dialogando com eles, transformando-os em sujeitos de um filme, e não em objetos - muito comuns nos documentários sobre "minorias". As cineastas vão à busca de dramas pessoais, histórias pontuais, apontando contradições, crises e afirmações de identidades.
Porém, não se trata de dá voz ao outro, e sim que exprimir deles, colocações e imagens correspondentes com o pensamento das "autoras", já que todo documentário é um discurso autoral. Ao mesmo tempo em que expõem as desigualdades, que até certo ponto são agravadas pelo carnaval, as diretoras deixam claro uma espécie de consciência social por parte dos cordeiros, que repetem a todo tempo que sem eles não haveria carnaval, não obstante, como precisam de dinheiro, carregam corda para os brancos.
E são realmente essas contradições que são expostas no filme, através de histórias particulares, que se misturam a tantas outras. Todavia, Amaranta e Ana Rosa vão na contramão das grandes emissoras de TVs que cobrem e exportam as imagens do carnaval baiano,( no qual os grandes artistas e as "pessoas bonitas" dos blocos são protagonistas) retratando as individualidades sem sensacionalismo e sem recusa em ouvir e contar histórias aparentemente desinteressantes.
Filmado durante três carnavais, o filme mergulha no subterrâneo da folia, dando visibilidade a pessoas amorfas, produzindo antes de tudo um documentário ativo, cheio de questionamentos sócio-ideológicos. Elas deixam de lado o modelo griesoniano em busca de questões especificas e pontuais, o qual, o aproxima do modelo sociológico.
Cordeiros é quase um estudo as avessas do carnaval baiano, ou melhor, um pequeno esboço das contradições sócio-cultural e ideológica da festa, mostrando trabalhadores, que se apertam nas cordas, para proteger parte de uma sociedade que os expurgam e não os vêem. E se compararmos Cordeiros com outros filmes que têm o carnaval como história, iremos perceber a importância do filme enquanto discurso ideológico. Tanto Ó Paí Ó (Monique Gardenberg) quando 5 na multidão (Belizário França), são extremamente alegóricos em sua composição narrativa em seus discursos.
Essa questão se liga também a escolha das cineastas pela montagem clipada, que ao mesmo tempo, traduz o "espírito" da festa. Contudo elas pecam ao utilizar dispositivos de filmagens dos mais diversos, além de exagerarem na utilização de músicas extra-diegéticas, o que cria, a nosso ver, sensações que deveriam ser "vistas e ouvidas" pelo impacto das imagens e dos sons. Mas isso é o que menos importa no documentário.
O fato mesmo é que as diretoras afirmam os personagens enquanto sujeitos de um filme, retirando estereótipos, e deslocando significados pré-concebidos. Tanto que no final do filme, já nos créditos, todos os personagens são nomeados, ou seja, são de fato personagens, não objetos de um documentário. Por tudo isso, Cordeiros é um filme sem alegoria e sem mitificações. Quase um soco no queixo.

**Chico Alves é jornalista e videomaker.

5 comentários:

Anônimo disse...

Sem muitos rodeios, o Chico Alves consegue realizar uma crítica perpicaz do filme da Amaranta César. Sem dúvida, precisamos construir crítica na Bahia, pois, eleogios por si não dizem muito. Borges até dizia que numa crítica não há elogios. Quero enfatizar o traço ideológico destacado por Chico. Cordeiros é um filme-documentário com tese, bem fracês na formatação dele. Também quero destacar a pontuação feita por ele em relação ao aúdio deste filme. Há de fato um exagero no uso deste dispositivo, o que não acompanha o movimento de contraposição (ou simples versão) ao conteúdo apresentado pelo filme.
Olha Chico...assisti o "Peões". Não gostei do formato, mas gostei do tema. Depois conversamos sobre.

Anônimo disse...

Vou aproveitar o espaço para falar com o Helton fesan. Fiz um novo comentário sobre o texto Outra Coisa. Percebi que comete um equivoco.

Obs: vale a pena assistirem o filme "onde os fracos não tem vez". É um recado fantástico para o novo cinema, onde o protagonista é substítuido pelo antogonista e pela nova tendência do cinema global.

Helton Fesan disse...

Olá, sobre o filme, infelizmente não assisti e não posso comentar. Porém a crítica é excelente, aguçou-me a assistir o filme e trouxe elementos autonômos que trazem a reflexão sobre o cornaval mesmo para quem, como eu, não assistiu o filme. Crítica de cinema é interessante pois é subsidiária do filme enquanto técnicae forma, mas, alcança uma autonômia sobre o drama proposto. lembrou-me do saudoso cineimperfeito. Gde Abraço.

Helton Fesan disse...

Olá, Sócrates. Vi teus comentários e agradeço-te as palavras (de ambos). O caminho é esse mesmo, a releitura é que dá valor a qualquer obra. Valeu.

Guellwaar Adún disse...

Xicorióvix, felicidade grande tua, a escrita sobre este "Cordeiros". Creio que retrata bem a obra de Amaranta. O filme e seu desenho é basicamente o que é narrado em seu texto, bem como a realidade sem fantasia do carnaval baiano: uma elite branca, ariana, se refestelando nos camarotes e trios de cordas, ao passo que as ruas espremidas pela especulação camarotenária se constituem como o território único para os/as ex-pipocas da folia do momo magro soterolopolitano.
Chico, seu texto me impulsionou a buscar entender que diabos vem a ser o modelo griesoniano... vou fuçar um pouco, valeu por mais esse aprendizado, meu amigo... teu texto é tão leve e despretencioso quanto vc, camarada.